quinta-feira, 27 de outubro de 2016

cartas de viagem | varanasi | índia

a mãe ganges - na antiga benares - varanasi - índia

















fotografia | raquel patriarca | vinteeseis.março.doismiledezasseis

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

carta de raquel patriarca para a porta n. 42



pela manhã nos ghats de varanasi - uttar pradesh - índia


















Escrevo mal sentada e com os papéis assentes nos joelhos, numa das escadarias que em Varanasi se debruçam com vagar para o Ganges. É cedo, o sol ainda não nasceu e eu, criatura intrometida nos rituais de amanhecer dos outros, estou só aqui, muito quieta excepto nos papéis que já são teus. Às vezes pára-se-me a escrita e fico só a sentir o silêncio. A fazer por entender os gestos que vejo entre as margens e a claridade que sobe ao fundo. As pessoas chegam, sozinhas ou em família, e vêm banhar-se nas águas do rio. Vêm ao encontro do sol, carregadas daquela esperança que só existe nas primeiras horas de cada dia, antes de o cansaço e a desilusão as virem tocar. Descem para o rio como para um altar e vêm purificar-se numa água indizivelmente suja. Pergunto se eles pressentem quão imunda corre a água do rio. Tenho a certeza de que sabem tudo isso. Sabem todas as coisas melhor do que eu. Sabem que o Ganges vai imundo de tudo, menos de maldade e de engano. Penso no que dirias se aqui estivesses comigo. Com que palavras poderíamos desembaraçar as incompreensões na cabeça um do outro.


Há crianças a fazer yôga uns degraus mais abaixo. Trazem o nos olhos mesmo brilho, o mesmo contentamento sereno que aprendi a admirar no rosto dos indianos. Dou por mim a ter pena da sua condição de miséria. E dou por mim a invejar a sua paz interior. Tão desimportados do mundo, tão conhecedores de si.


Não sei onde e quando voltarei a escrever. Aceita um abraço imenso e a certeza de que te trago comigo.

r.

fotografia | vinteeseis.março.doismiledezasseis
texto | sete.outubro.doismiledezasseis
ambos | raquel patriarca

envia-me cartas

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O projecto “ENVIA-ME CARTAS” é um registo fotográfico da beleza encontrada nas portas de entrada que ainda exibem caixas de correio com a palavra “CARTAS” remetendo-nos para reminiscências de outro tempo. De um tempo em que se punham no papel os sentimentos. Um tempo em que cada palavra tinha um peso próprio e em que a Carta tinha importância só por existir. Tinha nomes que se ligavam e que faziam da Carta um instrumento de comunicação único e personalizado. Sem legenda, estas pequenas portas eram apenas tampas de metal. Com legenda, são o convite à entrada de poetas.

O convite à entrada do amor, da tristeza, das saudades, da alegria e da ironia.



Hoje escreve-se pouco, e são já raras as cartas com juras de amor eterno,

mas as caixas de correio continuam lá, à espera que lhes mantenham o significado.

 texto e fotografia | Raul Reis
 
eu já enviei a minha. para participar, visitar ENVIA-ME CARTAS

receita para construir um livro


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a verdadeira biblioteca ou uma história em três metades

















Quantos livros tem um livro 

Primeira Metade: Sobre Começar um Texto 

Quando eu era pequena, tinha muitos sonhos. Agora que sou maior, estou igual. Sonho com os pedaços do mundo que quero conhecer, os abraços que quero apertar, as imagens que quero criar, os livros que hei-de escrever. Estar aqui é um desses sonhos da idade adulta, arrumado na rubrica das coisas admiráveis de que é preciso fazer parte. Quando me imaginava aqui, começava sempre por agradecer às Correntes porque correm e por me levarem na correnteza. Agradecer o estar aqui agora e todas as vezes que estive aí e que, no fim do dia, regressei a casa maior. Não de tamanho, mas maior. Quando me imaginava aqui, depois de agradecer, fazia uma comunicação brilhante. Não me parecia muito difícil. Não sei porquê, nessa altura as ideias eram transparentes e ordenadas, as palavras respondiam à chamada sem atraso e sem engulho. Era preciso citar um autor de referência: Pessoa, Benjamin ou Borges; Camus, Barthes, ou Foucault. Falar de literatura e arte, de coisas verdadeiras e universais. Como se no mundo – ou em mim – não restassem dúvidas da minha sabedoria sobre todas as matérias.

Mas estas coisas só acontecem na minha imaginação. Sonho e nada mais. No momento em que chegou o convite, todo o dia me parecia feito de irrealidade. A cabeça ficou vazia e a página em branco. Afinal, é tudo muito difícil.

Sentei-me para escrever e não chegavam as frases que deviam iluminar-me as ideias. Fui à procura dos cadernos e das notas amarelas com os registos da genialidade alheia, e nada rimava com o tema ou a situação. Em ressonância longínqua das traseiras do cérebro, soava uma espécie de conselho que ouvi quando era pequena: “Sabendo muito do que falas, fala pouco. Sabendo pouco, fala quase nada. Sabendo nada, sorri”.

Segunda Metade: Sobre o Meu Avô

E assim, em vez de Benjiamin, Borges ou Barthes, veio ajudar-me uma espécie de aforismo de Joaquim Patriarca, mestre-escola, guarda-livros, organista na Igreja de S. Pedro, emigrante, retornado, avô. E a conselho dele, porque falamos de livros, vou falar pouco. 

Quando eu era pequena, fascinava-me a capacidade que o meu avô tinha para guardar objectos. Para ele nada existia que fosse imprestável. Mais cedo ou mais tarde, tudo ganhava serventia e, por isso, tudo se guardava em lugar próprio, rigorosamente ordenado. Esta filosofia, vim a percebê-lo mais tarde, levava-me a intuir que, até para mim – criatura algo estouvada, grande consumidora de mercurocromo, tantas vezes nas imediações de coisas indesejáveis como cacos ou nódoas –, até para mim, dizia eu, se guardava um lugar e uma função. E, enquanto não descobria o meu lugar e a minha função, fui absorvida no fascínio de como o meu avô se movia pelo mundo e da serenidade com que coleccionava todo o tipo de objectos.

As folhas soltas de papel e os fios de diferentes materiais, os tocos dos lápis que já mal serviam para escrever, as sementes que havia de pôr na terra, os pequenos pedaços de plástico que, mais tarde e com a ajuda de um canivete, transformava em mistérios de rezar, perfeitamente redondos e recortados: um buraco ao centro para o indicador, dez saliências em forma de pétala, uma para cada ave-maria, a cruz na décima primeira pétala, no lugar do pai-nosso.
Cada gesto do meu avô era feito com esmero e ternura. O vinco nas arestas dos embrulhos de correio e o nó direito que unia, em absoluta perpendicularidade, o cruzamento do cordão, a caligrafia pausada, aprumada, perfeita, a adivinhar que, naquele endereço, tinha de erguer-se um palácio. As canas enterradas na horta a estender fios de sisal que desenhavam uma espécie de guias, por onde se alinhavam os sulcos na terra, as sementes e as plantas.
Fascinavam-me as coisas que ele fazia mas, mais ainda, o vagar sereno que colocava em tudo. Uma alegria simples que enchia de plenitude os gestos mais comuns. Curiosamente desimportado do resultado final, o meu avô parecia absorver-se no encantamento – para nós invisível – de todas as tarefas a que se entregava, como se a função inteira da existência se guardasse naquele momento. Punha, de verdade, quanto era no mínimo que fazia, de maneira que despachar uma encomenda ou plantar morangueiros se transformavam em formas de arte.
Foi nesta altura, enquanto os meus avós se transformavam em memórias nucleares, que aprendi a relacionar-me com os livros. Eu não fui uma daquelas crianças adoráveis que, sentadamente sábias, amam os livros desde que se lembram de respirar. Gostava muito que me contassem histórias, como todas as crianças, mas adorava correr desenfreadamente pelas ruas íngremes que desciam da casa dos meus avós ao fundo da vila. Saltar muros e inventar barcos feitos de casca de árvore que depois fazia navegar nos ribeiros que desciam da serra pela primavera. Subir às tílias descalça, com um saco de pano para apanhar os raminhos de fazer chá, sair nos dias de feira, a cheirar os bolos de leite ainda quentes, e ajudar a avó a escolher os figos mais maduros e as colheres de pau mais redondas e fundas. Havia uma televisão, e não é que não gostasse de a ver, mas o aparelho era muito demorado de arrancar, apanhava a televisão espanhola e não havia desenhos animados, só programas de agricultura e notícias. Naquele tempo, a televisão era mais um entroncho que uma distracção a sério. E havia a escola, claro, e a catequese para onde eu ia sempre muito contente porque, no regresso, a minha avó me dava uma bolacha de chocolate. Era uma obra-prima em forma de estrela, vinha embrulhada em papel de prata colorido, começava a derreter-se mal me tocava nos dedos e inspirava-me um conforto interior que eu me habituei a confundir com o sentimento da fé.
Os livros trouxeram a calma e a profundidade que eu não me dava ao trabalho de procurar em nenhuma outra dimensão na vida a não ser, talvez, na minha família. 

Terceira Metade: Sobre os Livros 

Quando eu era pequena passava muito tempo em casa dos meus avós. Viviam por lá muitos livros, uma condição que eu entendia como decorrência natural de, num tempo antes de mim, o meu avô ter sido guarda-livros. Um guarda-livros era, evidentemente, uma espécie de bibliotecário com um título singelo. Naquele tempo e lugar, tudo era menos pretensioso, sobretudo os nomes das profissões. Foi o meu avô quem ensinou a minha avó a ler e eu, que assistia a toda aquela circunstância de meiguice, mais convencida ficava de que a sua função no mundo era a de guardador de livros. Na dimensão preservável do objecto, como fazia com todas as coisas, e na dimensão partilhável do conteúdo, que lia para si e para nós, ensinava a ler e ajudava a compreender.
Quando eu era pequena o meu avô ensinou-me a encadernar os livros e eu entendi que devia aprender a fazê-lo com a ternura e o esmero que ele trazia sempre nas mãos. Ele levava horas a reforçar as capas e a cobri-las com papéis de cores e texturas diferentes, impecavelmente vincados nas dobras, os títulos nas lombadas claramente desenhados naquela caligrafia brilhante e impossível de copiar. Eu aprendia a vincar as dobras com os dedos pequeninos e mal capazes. Queria muito imitar-lhe a arte mas, com a mesma naturalidade que os gestos do meu avô se inclinavam para a perfeição, os meus obedeciam a um desvio incontrolável para o desastre e, muitas vezes se rasgavam os papéis e se estragavam os títulos com erros de ortografia. O meu avô suspirava, sobrepunha a sua paciência à minha frustração, deitavam-se à lareira os papéis rasgados e os erros de ortografia, e a tarefa começava de novo. Desta vez, melhor.
O meu primeiro livro contava a história da fuga de uma tal Alice através do espelho. Foram precisas várias tentativas até o serviço ficar aceitável e foi maravilhoso ver o meu avô sorrir e dizer que sim com a cabeça enquanto examinava o meu primeiro projecto: um desconchavo de papel manteiga com as dobras quase tão espessas como o próprio livro. Foi um triunfo indizível. E, logo a seguir, chegou uma nova dificuldade.
No momento de colocar o livro na estante, havia um banco para eu subir e ficar da mesma altura do meu avô, e havia uma única regra de arrumação, muito simples que se baseava - em partes iguais – nos conceitos de ordem e de caos, um critério difícil de definir e que ordenava os títulos alfabeticamente segundo o destino geográfico do assunto.
O meu avô levou algum tempo a explicar-me que cada livro é como uma viagem e que cada viagem se faz rumo a um destino diferente. Eu não compreendi e ele foi buscar um volume grosso que trazia na lombada as palavras Crime e Castigo. Explicou que era um livro muito importante para conhecer os conceitos de bem e mal, certo e errado que vivem nas aspirações e atitudes de cada um. Uma viagem que se fazia rumo àquilo que uma pessoa deseja para si e ao percurso que está disposto a fazer para lá chegar. Como eu fiquei muito calada, a segurar nas mãos a minha Alice sem ideia de onde a guardar, o meu avô pegou num outro livro – 20.000 Léguas Submarinas – a aventura de uma viagem pelas profundezas do mar, ou então, uma viagem pelo engenho humano e pela vontade de ultrapassar o medo que é natural sentir-se em relação ao desconhecido.
Eu olhava para as minhas mãos.
Tens de descobrir onde te leva o teu livro, revelou por fim o meu avô.
E eu compreendi que precisava de o ler e, só passados muitos dias, voltei a subir ao banco resolutamente à procura da prateleira marcada com M de Maravilhas.
Fui compreendendo aos poucos o sistema de arrumação de livros que o meu avô praticava, garantindo-me sempre que era assim que se faziam as coisas nas verdadeiras bibliotecas. Acontecia por vezes termos de mudar os livros e as viagens de um lugar para outro. A cabana do Pai Tomás – muito muito bonito – teve morada no E de Escravatura, depois mudou-se para o A de Abolicionismo e acabou, mais tarde, por inaugurar uma nova secção no L para Livros que Salvaram o Mundo.
Quando eu era pequena aprendi com o meu avô a ternura de todas as coisas. Aprendi que é possível ser feliz em sossego. Que os livros devem ser lidos antes de arrumados, que cada livro propõe uma viagem e que cada leitura pode criar novos rumos a um caminho já percorrido. Aprendi a ser guardadora de livros.
Mais tarde, muito mais tarde, depois de graduada, pós-graduada e especializada, recebi um papel carimbado que me fez bibliotecária, que é só um nome diferente para uma prática muito antiga. Estudei catalogação e indexação, as listas ordenadas de termos e as tabelas de autoridade, os sistemas de triagem das espécies bibliográficas e os códigos alfanuméricos das cotas e descobri que, afinal, já não existem verdadeiras bibliotecas, como aquelas de que falava o meu avô. Descobri que nas bibliotecas onde hoje se guardam os livros não é possível compreender-se o mapa das viagens da humanidade. Da humanidade que escreve e da humanidade que lê.
Mas em casa, guardo uma verdadeira biblioteca, com estantes e prateleiras em que se faz um esforço genuíno de procura da verdade. Ainda lá está o volume mal encadernado da pequena Alice que agora repousa no I onde se alinham as viagens Interiores.
Foi com esse o livro que tudo começou. Quantos livros se guardam lá dentro? Suponho que terei de o ler outra vez. Por agora, não sei. E como não sei, devo apenas sorrir.


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