quarta-feira, 26 de agosto de 2009

miolo de pão

.
lembro-me às vezes
– sem quando nem porquê –
do sabor que tinha
o miolo do pão do dia anterior.
mas não sei se era
o pão ou o dia
que tinha
aquele sabor.

e nós as duas
sentadas,
na mesa da cozinha
à janela
de pernas cruzadas,
de pijama e pantufas
remelas nos olhos
cabeças despenteadas.

jogávamos a adivinhar
a cor dos carros
que haviam de passar.
um carro branco, um carro azul
e outro vermelho
– amassado e sem pára-choques –
muito velho,
e uma carrinha preta
logo a seguir.
afinal era uma lambreta
com imensa tralha mal atada atrás
quase quase a cair.
ah pois!
de vez em quando,
uma carroça de bois.

tu acertavas tudo
e eu…
quase nada.
pergunto-me hoje
se fazias tu batota
ou estava eu muito ensonada.
não importa, pois não?
se ainda trago comigo
o sabor do miolo de pão.

eram o mundo inteiro:
uma mesa e uma janela.
e eu acreditava na magia
que passava na estrada,
disfarçada de furgoneta amarela.

lembro-me às vezes
– sem quando nem porquê –
do sabor dessas manhãs,
em que não éramos
ainda nada
nem ninguém.
apenas irmãs.


à minha irmã
raquel patriarca
vinteeseis.agosto.doismilenove

3 comentários:

  1. Esta é uma das memórias mais fortes e estruturantes que tenho. Só não tinha a ideia de acertar tantas vezes... Achas que sim? Não seriam os teus olhinhos de pequenina a olhar para a mana "crescida"?
    Também me lembro muitas vezes dessas manhãs em que não éramos ainda nada, só irmãs. E tenho saudades.

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  2. Raquel, passei aqui por acaso, que ando tão afastada da poesia... Obrigada porque me transportaste para longe outra vez... Ao sabor de uma tarde do passado, do miolo de pão, e também eu tentava, da minha janela, adivinhar a cor do próximo carro. E tenho saudades da minha irmã que está tão longe... Bjs! Parabéns pelos versos de memórias.

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  3. Fizeste-me chorar.
    Fizeste-me lembrar de momentos simples e puros.
    Em que também eu e a minha irmã tentávamos adivinhar as cores, e as matriculas e as marcas dos carros.
    Fizeste-me chorar...sobretudo porque nessa altura também nós não eramos mais nada a não ser irmãs.

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